Nessa caricatura o autor mostrava como um período de instabilidade política e económica tinha conduzido os portugueses a concluir que a única forma de colocar um ponto final na sucessão de revoltas, motins, atentados, assaltos e violências várias que então manchavam uma República ainda infantil, era entregar o poder aos militares. Estará Portugal nesse estado, uma vez mais?

Precisaremos nós de um militar para resolver o “deslaçamento moral”, “o cataclismo ético”, e restaurar a sebastiânica “coesão social”? Precisamos de uma farda que nos obrigue a recordar, pela força da submissão ou da espada, que “aquilo que nos une é mais do que aquilo que nos separa”?

Em 1926 foi esse o “trunfo” da saída para um Portugal em crise. O golpe veio de comboio desde Braga até Lisboa, ficando famosa a fotografia do marechal Gomes da Costa em cima de um cavalo descendo em triunfo a Avenida da Liberdade empunhando, claro está, uma espada. O triunfo do trunfo. A propaganda e a conspiração integralista tinham feito o seu trabalho e a oposição ao então primeiro-ministro António Maria da Silva vibrou com o golpe.

A aclamação da população foi quase total. A glória de Gomes da Costa não seria, porém, tão eterna como lhe jurara o país. Depois de umas manobras palacianas, acabaria por morrer só e miseravelmente pobre nos Açores poucos anos depois. Ia nu o rei.

O fardo das fardas

Não há partido político que não faça ultimamente nos seus discursos uma referência ao “problema” da “perda de autoridade” daqueles que normalmente representam a autoridade num país. Normalmente incluem-se neste “desastre”, os políticos, os polícias e, naturalmente, os professores. Há mais do que razões para acreditar que existe um problema.

O prestígio dos políticos nunca atingiu um nível tão rasteiro. Os debates na Assembleia da República enchem-se de falsidades e impropérios vis. Quando algo de elevado ocorre no Parlamento, todos percebem estar na presença da excepção.

Os polícias são agredidos na rua, os seus carros perseguidos à pedrada e muitas das suas esquadras são casebres decrépitos. Mesmo os afamados “soldados da paz”, autoridades estimadas, vivem hoje em pé de guerra. Desbaratam a sua credibilidade por dá cá aquela palha. Ninguém tem sequer o direito de ficar surpreendido. Quando os bombeiros se manifestam fardados dentro da Assembleia da República, incentivados pelos seus sindicatos, ao mesmo tempo que, lá fora, acendem fogueiras e lançam petardos, havendo no Parlamento quem aplauda e ache que tudo isto é aceitável, imediatamente se percebe que, francamente, este é um país de gente doida.

O presidente da Assembleia vai alertando para o facto de não ser tolerável que polícias assistam fardados ao plenário, por ser esse o lugar civil de presenciar os trabalhos e não um lugar onde se possa permitir qualquer formato de coação sobre os deputados. Como qualquer ideia razoável e sensata, ninguém o escutou.

Se queres a paz, prepara-te para a guerra, recomendavam os antigos. Como Aguiar Branco não quis exercer a sua autoridade, porque hoje em dia a palavra “autoridade” soa a coisa pouco democrática, sobretudo na “Casa da Democracia”, pronto: lá puderam os polícias manifestar-se fardados num Parlamento onde não podem manifestar-se fardados.

Os deputados, por gana eleitoral, preferiram esquecer que só um legítimo representante do povo eleitor tem ali palavra ou expressão; ninguém mais tem essa legitimidade democrática. Violaram nesse momento a legitimidade exclusiva que o povo lhes conferiu e, por causa disso, profanaram a sua própria autoridade.

Num parlamento ninguém está acima da realidade que resulta da decisão eleitoral de um povo. Só entra ali quem o povo elege. Claro está, que umas semanas depois, lá estavam os bombeiros, trajados a rigor, desprezando o povo, e desta vez investidos de um precedente. Bailarinas, cozinheiros, freiras, futebolistas e palhaços, o Parlamento está à vossa espera!

Haja um que nos governe

E a autoridade nas escolas, como vai ela? Os dados sobre agressões a professores estarrecem. Um inquérito recente referia que 55% dos professores foram já, de um modo ou outro, alvo de agressão. Que lugar tem hoje a autoridade nas nossas salas de aula? E por que motivo todos tremem quando se usa a palavra “autoridade”? Que se receia?

O relacionamento pedagógico entre professores e alunos constitui hoje uma das pedras de toque do universo escolar. Ora não há relacionamento pedagógico nenhum sem uma autoridade bem definida. Na verdade, não se conhece comunidade humana de sucesso, grande ou pequena, sem uma autoridade bem identificada e diligente.

Como pode uma escola ser pragmaticamente autoritária? Se uma escola constitui um enclave de empatia, por vezes o único refúgio meigo que uma criança conhece, como se conjuga essa ternura profissional com a inflexível restrição da liberdade de cada um? Dito de outro modo, como se põem deputados e miúdos na ordem, sem os obrigar a ler Foucault ou a perceber Derrida?

Em primeiro lugar é preciso que a autoridade seja legítima. O voto não é a única forma de legitimar um poder, como se sabe. A força bruta e a corrupção consagram muita da autoridade que rege o mundo dos homens. O mérito, o humanismo e a cultura também parecem funcionar bem.

Não faltam exemplos de personalidades que se tornaram grandes líderes sem usar da violência ou do aviltamento ético. A escola deve ser um “laboratório da democracia”, sem dúvida. Educar para a cidadania plena e interveniente pressupõe lidar quotidianamente com a sua gramática e a sua praxis ética. Mas o Estado teme a democracia na escola. Houve um golpe de Estado que a tornou raquítica. É inaceitável que as direcções das escolas não sejam eleitas por toda a comunidade como foram durante décadas em Portugal. As mesmas décadas que acabaram com a pandemia de analfabetismo e puseram no terreno a escolaridade obrigatória de doze anos. Eleger legitima a autoridade. Mas apenas em quem tem direito a votar e ser eleito. Legitimar as lideranças nas escolas pelo voto comunitário é fundamental para uma vivência sã, sólida e instruída da democracia, sobretudo porque ninguém precisa de uma autoridade precária.

Despir a farda

Uma autoridade indolente e doente não resulta. Uma autoridade faz-se de legitimidade. O problema dos ditadores é que caem sempre. E com estrondo. Acabam sempre mal, pendurados pelos pés, suicidam-se, morrem em atentados, são arrastados por ruas ensanguentadas, com populares a invadir os seus palácios e as suas garagens de rolls, ferraris e lamborghinis.

A autoridade é um bem precioso. É preciso cuidar dela. Vigiá-la, impor-lhe limites e responsabilizá-la. Pensar que a coisa se faz com artifícios é mero ilusionismo. É preciso despir a farda da autoridade. Uma farda não é uma máscara. Uma farda é uma fiança. Um compromisso. Uma dívida que é preciso pagar sem falhar uma única prestação. O que mais importa numa farda é quem a veste e como a veste. A roupa nada é sem isso; é uma farpela. Confundir farda com autoridade é uma alucinação. Uma farda em si não diz rigorosamente nada e é assim que deve ser. Não faltam exemplos de quem veste fardas que não merece. Fardas que envergonham fardas. Fardas que enxovalham a autoridade.

Um professor que não tenha autoridade não ensina nada nem serve para nada. Mas essa autoridade não lhe vem de ser professor. Vem de ser quem é, muito para lá de ser professor. É aquilo que faz e diz. O que lhe sai da boca e dos gestos. É o seu exemplo e a sua integridade que lhe darão autoridade. A sua emancipação e intrepidez perante a indignidade. Nesse sentido, nada distingue um candidato a professor de um candidato a Presidente da República.

Se pensa que é um título ou uma farda que lhe vão conferir ou garantir a autoridade de que precisa, está muito enganado. Isto não vai lá com fardas ou diplomas. Isto vai lá com a convicção, a ideia, o gesto e a elevação.

Um candidato de farda é, simplesmente, um candidato que, ao menos, não vai nu. Mas é importante recordar que até um rei pode ser persuadido a passear-se nu nas ruas, brandindo uma espada, soberbo e ufano, porque alguém o convenceu de que vai trajado a rigor.