É possível que aconteça agora, finalmente, uma mudança de paradigma nas regras do trabalho doméstico remunerado. Nesta quinta-feira, o Parlamento debate vários projetos para mudar a lei e o regime de segurança social que se lhe aplicam. Em causa está saber se se põe fim a uma longa história de marginalização legislativa e de desvalorização social, que faz com que, até hoje, o serviço doméstico esteja enquadrado por uma lei à margem do Código do Trabalho e sobretudo por um regime de segurança social com muito menos direitos que o regime geral. Esta desigualdade legislativa reforça a desconsideração económica e política de um trabalho altamente feminizado (mais de 98% são mulheres) e crescentemente protagonizado por trabalhadoras migrantes e racializadas (17% em 2022, agora certamente muito mais).

O agendamento parlamentar acontece depois de ter sido apresentado, em abril do ano passado, o Livro Branco “Por um trabalho doméstico digno”, com um diagnóstico detalhado e várias recomendações importantes, realizado pelo STAD (sindicato que absorveu, na década de 1990, o antigo Sindicato do Serviço Doméstico, uma experiência notável e única na história do sindicalismo português), sob o impulso da Comissão para a Cidadania e Igualdade Género. O debate acontece também cerca de duas semanas depois de, após prolongada insistência, ter sido finalmente tornado público pelo governo o Relatório do Grupo de Trabalho criado em 2023 que estudou e propôs alternativas para o regime de proteção social do serviço doméstico. Nesse documento, Instituto da Segurança Social, Direção-Geral do Emprego (DGERT) e Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) recomendam mudanças significativas, na linha das que serão discutidas no Parlamento. Surpreende aliás que, datando o documento de setembro de 2023, só agora seja conhecido e o anterior governo tenha desperdiçado a oportunidade de fazer as alterações sugeridas por aquelas entidades.

Passadas décadas de silêncio sobre o tema, o trabalho doméstico remunerado tem merecido nos últimos anos crescente atenção. No teatro, uma peça de Sara Barros Leitão, estreada em 2021, resgatou a história da organização coletiva destas trabalhadoras e teve grande impacto, com dezenas de apresentações pelo país. Na literatura, por exemplo, um magnífico romance de Manuel Abrantes, de 2024, retratou a vida (interior e exterior) dessas meninas que saíam das aldeias para virem ser criadas para “casa dos senhores” nas grandes cidades. Trabalhos jornalísticos, como a série “Quase da Família”, do Fumaça e da Cassandra, aprofundaram o tema. Outras iniciativas, como o manifesto “Sonhos de uma Vida Melhor”, dinamizado por Anabela Rodrigues desde o ano passado, têm promovido o debate, utilizando o teatro do oprimido. Houve o Livro Branco e o Grupo de Trabalho, como se disse. O Bloco fez uma audição pública, em dezembro passado, com vários destes interlocutores e apresentou então três projetos de lei que foram agora agendados. PS, PCP e Livre juntaram a esse agendamento projetos de lei ou recomendações ao governo.

Mais de 200 mil trabalhadoras num regime de desigualdade

O que está, afinal, em causa? Apesar de existirem hoje mais de 200 mil trabalhadoras do serviço doméstico em Portugal, em 2022 só 63 mil estavam inscritas na segurança social com contribuições pagas. A criminalização do trabalho não declarado, aprovada em 2023 no âmbito da “Agenda do Trabalho Digno”, gerou um certo alarme entre as famílias, o que duplicou o ritmo de inscrições na Segurança Social quando a lei entrou em vigor, em maio daquele ano. A nova dedução em IRS das despesas com trabalho doméstico remunerado (até 200 euros), promulgada no início desta semana pelo Presidente da República, terá porventura, também, algum efeito numa maior formalização destas relações de trabalho. Por boas razões, os últimos números conhecidos estão já desatualizados.

Mas mesmo para quem está dentro do sistema de segurança social, e tem descontos em dia, o regime tem dois grandes problemas. Em primeiro lugar, a lei prevê que as contribuições possam ser feitas considerando um rendimento muito abaixo do salário mínimo (o chamado regime convencionado, que toma como base contributiva mensal para o trabalho a tempo completo 522,5 euros, valor do IAS). No caso de quem trabalha algumas horas, que é a maioria, é calculada uma proporção desse valor, e a base é ainda menor. Esta regra diminui significativamente o que as pessoas recebem em caso de doença ou quando forem para reforma, provocando situações de pobreza assalariada e na velhice. Como refere o grupo de trabalho que incluiu a Segurança Social e a ACT, é incompreensível que a referência do regime de Segurança Social não seja o salário mínimo (e a respetiva proporção em função do número de horas trabalhadas). Mas não é inédito. Vale lembrar que, até 2004, havia em Portugal dois salários mínimos nacionais: o geral e um, mais baixo, para as trabalhadoras domésticas! No fundo, é essa lógica de segregação laboral que continua a prevalecer no regime de proteção social.

Em segundo lugar, todas as trabalhadoras que estão neste regime convencionado (eram 91% do total, nos dados disponíveis), não têm acesso a subsídio de desemprego. Em 2022, só cerca de 5 mil gozavam de proteção caso ficassem desempregadas. Esta realidade obrigou aliás, na pandemia, a desenhar uma prestação social extraordinária para estas trabalhadoras, que teve pouca duração. Como é possível continuarmos a aceitar, ao arrepio do que recomendam as Convenções da Organização Internacional do Trabalho, que as trabalhadoras do serviço doméstico sejam, à luz da lei e do Estado português, filhas de um deus menor quando comparadas com os restantes trabalhadores por conta de outrem?

No que diz respeito à esfera propriamente laboral, há também um largo campo de intervenção. Mais de 80% das pessoas que fazem trabalho doméstico para mais que uma família não tem contrato escrito. Além disso, muitas desconhecem os seus direitos. Por exemplo, quantas trabalhadoras recebem o proporcional das horas que fazem em subsídio de férias ou de natal, como a lei prevê? Quantas têm seguro de acidentes de trabalho? E está a ACT preparada para fazer inspeções, num contexto em que não pode entrar em domicílios privados sem autorização prévia e precisa por isso de recorrer a outros métodos? A quantas trabalhadoras se aplicam as regras sobre saúde e segurança no trabalho? Não deveriam estas trabalhadoras ter, com as devidas adaptações, acesso à medicina de trabalho? Quantas têm doenças profissionais que nunca são reconhecidas como tal?

Não desperdicemos esta oportunidade

Para cada um destes problemas têm sido pensadas soluções. O trabalho doméstico assalariado deveria ser uma modalidade de contrato dentro do Código de Trabalho, respeitando simultaneamente as suas especificidades (o empregador é uma família e não uma entidade lucrativa, a atividade é desempenhada num domicílio…) e o direito à inclusão na lei geral. Para além dessa questão mais simbólica, é preciso acabar com todas as regras desiguais: no que respeita ao tempo de trabalho, sobretudo para as internas (que ainda existem), ou à cessação de contrato. É necessário que haja uma grande campanha informativa sobre direitos e deveres. É preciso que exista uma responsabilização solidária dos seguros, para que a impossibilidade de trabalhar provocada pelo acidente numa casa gere cobertura também nas outras casas onde a pessoa exerce a sua atividade.

O trabalho doméstico, aquele em que só reparamos quando não está feito, como dizia Angela Davis, raramente tem sido objeto de interesse pelo campo mediático e político. Na última reforma da legislação laboral, as poucas notícias sobre o tema dirigiam-se a quem emprega e não a quem trabalha: “Tem uma empregada doméstica e não a declarou? Multa pode chegar aos 180 mil euros”, titulou o Expresso, por exemplo (3/3/2023); “Trabalho doméstico por declarar arrisca prisão”, escolheu o jornal ECO como título (20/3/2023). É altura de acabar com o apoucamento de um trabalho tão essencial e invisível. Basta começar por dar atenção às recomendações que têm sido feitas pela OIT, ou seguir as sugestões do Livro Branco e do relatório feito pela Segurança Social, DGERT e ACT. É pedir muito desejar que não se desperdice esta oportunidade de mudar a lei para promover a mudança das práticas?