Conhecem-se há 50 anos. Marcelo Rebelo de Sousa era jornalista e colunista do Expresso, quando um homem relativamente sério, um certo tenente-coronel Ramalho Eanes, marcava com ele uns encontros discretos no bar do Espelho d’Água, em Belém, em pleno Verão Quente. Passava-lhe informações detalhadas sobre a situação político-militar nas várias unidades e no Grupo dos Nove, a ala moderada do Movimento das Forças Armadas, que semanas depois teria um papel fundamental no 25 de Novembro. Era impossível antecipar, mas tanto o rígido militar como o irrequieto comentador chegariam a Chefes de Estado. Esta sexta-feira, meio século depois, Marcelo Rebelo de Sousa, como Presidente da República, homenageou o primeiro Presidente da República da democracia, António Ramalho Eanes, no lançamento do seu livro de entrevistas com a jornalista Fátima Campos Ferreira “Palavra que Conta” (Porto Editora), na Culturgest. Pelo meio, nas relações entre os dois homens há toda uma história de encontros e desencontros, convergências e divergências.
Na sessão de final de tarde, onde se sentou a nata da política nacional, “o cidadão” Marcelo - que também prefaciou o livro -, havia de elogiar a “sageza” do general, que definiu como uma “sabedoria”, de alguém que “mais do que ser senador, acumula os talentos pessoais aos talentos cívicos, à experiência, à vivência e à abertura de horizontes”, que “muitos outros, inteligentes, lúcidos, brilhantes, não conseguem proporcionar”. Um enorme elogio. A sala era uma montra do poder presente e passado: o ex-Presidente Cavaco Silva, o presidente da Assembleia da República José Pedro Aguiar-Branco, o primeiro-ministro Luís Montenegro, o ministro da Defesa Nuno Melo, o líder do PS Pedro Nuno Santos, o cardeal Américo Aguiar, o chefe do Estado-Maior do Exército general Mendes Ferrão, o ex-líder do PS Ferro Rodrigues, o constitucionalista Jorge Miranda e o ex-ministro e investigador António Barreto, que fez a apresentação do livro.
Naquela época, no tempo do PREC, nem com toda a sua perspicácia o jovem Marcelo se apercebia da importância que aquele homem viria a ter. Sabia que havia uma organização no Grupo dos Nove e que ele era um dos operacionais, mas toda a gente dava mais importância a Melo Antunes, o ideólogo do MFA, sem conseguir determinar exatamente o papel que Ramalho Eanes viria a ter. Dali a menos de um ano, contudo, Marcelo foi - na sua narrativa dos factos - um fator importante no impulso à primeira candidatura presidencial do militar.
O papel de Marcelo no apoio do PPD à primeira candidatura de Eanes
Quando se preparava para participar num debate na SEDES, na Rua de Palmela, juntou ao Expresso, uma reflexão sobre as primeiras eleições legislativas de abril de 1976, Marcelo cruzou-se com Rui Vilar - que agora dá o nome ao auditório da CGD onde o livro de Eanes foi lançado - e que lhe diz: “Sabem quem é o candidato presidencial? O Eanes, o PS vai apoiar o Eanes…” Incentivado por um amigo, Rebelo de Sousa correu a contar a Sá Carneiro, com um Conselho Nacional do partido a decorrer, e murmurou-lhe a informação ao ouvido. O líder do PPD ligou então a um elemento dos Nove e confirmou-a. A seguir, levou o Conselho Nacional a aprovar o apoio a Ramalho Eanes, antecipando-se assim a Mário Soares e ao PS, que tinham estado na preparação da candidatura. A ANOP daria a notícia. Facto político consumado.
No seu discurso desta sexta-feira, o Presidente da República deixaria, porém, nas entrelinhas, alguma análise crítica velada sobre o papel de Eanes, que apesar do apoio inicial de Sá Carneiro e de Mário Soares se havia de tornar em grande adversário senão inimigo político daqueles dois líderes, e motivo de enormes guerras internas quer no PS quer no PSD. No lançamento de “Palavra que Conta”, Marcelo descreveu Eanes assim: “Porque é alguém que viveu o 25 de Abril, a Revolução, foi decisivo no fim da Revolução, viveu a transição, mais 10 anos de transição, de luta aberta entre a legitimidade eleitoral e a legitimidade revolucionária”. Ora se de um lado havia uma luta entre a esquerda revolucionária e os defensores de uma democracia liberal ocidental (e Eanes estava deste lado), também passariam seis anos desde a aprovação da Constituição de 1976 e a revisão constitucional de 1982, que acabou com a tutela militar do regime, como Marcelo assinalou no discurso sobre o 25 de Novembro na Assembleia da República na passada quinta-feira.
Ramalho Eanes, prosseguiu Marcelo, “viveu o tempo de arbitrar, e o tempo de optar. E depois de ter vivido essa experiência, como recordou o professor António Barreto, foi para o outro lado da barricada, para o sistema político-partidário”, apontou. Ninguém na sala, porém, pronunciou o nome do Partido Renovador Democrático (PRD), a materialização política e orgânica do chamado eanismo, que chegou a ter 18% nas legislativas de 1985, e que contribuiu para a queda do primeiro Governo de Cavaco Silva - mas que seria esmagado pelas suas maiorias absolutas. “Viveu por um curtíssimo período a experiência da realidade político-partidária da sua liderança”, assinalou Marcelo. Para além de inspirador, Ramalho Eanes foi efetivamente líder do PRD já na fase de refluxo do partido: “E por isso percebeu, como ninguém, porque é que a nossa democracia nasceu como nasceu”.
Com Ramalho Eanes à beira de fazer 90 anos em janeiro, Marcelo Rebelo de Sousa que o homenageará também nessa ocasião, não lhe faria as críticas apontadas nos anos de 1984, quando o eanismo era um alvo nas páginas do “Semanário”, jornal que fundou depois de sair do Expresso. A Nova Esperança, fação que liderava no PSD contra o Bloco Central, era também adversária desse novo partido de “presidencialismo messiânico” com base na personalidade do general e que se confirmaria pouco tempo depois com a criação do PRD.
Quando Marcelo foi biografado, Eanes também fez um depoimento a falar do antigo colunista que tantas vezes o criticou na “Página Dois” do Expresso nos anos 70. “A vida, a política em especial, proporcionou-nos diversos encontros, gratificantes alguns, não gratificantes outros”, diria António Ramalho Eanes sobre Marcelo, num depoimento escrito em 2012, quatro anos antes de Marcelo se candidatar a Belém. “Não raro, nas muitas encruzilhadas a que a vida política conduziu o país, optámos por caminhos diferentes. Não raro também, e por isso e pela prática política que protagonizámos, nos digladiámos. Não raro, também, me criticou – com razão muitas vezes, sem razão (em meu entender) muitas vezes também. Enfim, devo confessar que nem sempre a nossa interação foi a mais cordata.”
O tempo, porém, foi aparando essas arestas. Agora, Ramalho Eanes, conhecido pela fina ironia (ministrada com certa gravidade e propositada cara de pau), agradeceu a intervenção do seu sucessor no lançamento do livro, em termos que provocaram gargalhadas na assistência: “Das suas palavras, eu sei que são exageradas e que não as mereço totalmente, mas confesso que já me habituei, mal o reconheço [risos do público], a receber do sr. Presidente provas frequentes de inequívoca simpatia”. Rematava assim: “Agradeço-lhe com amizade, apreço e grande consideração”.
Na sua intervenção, Rebelo de Sousa acabara de dizer que o testemunho de Eanes a Fátima Campos Ferreira “pode parecer, a quem lê o livro, pessimista em tantos momentos”, como quando critica os partidos, a colonização da administração pública ou a falta de aposta nas Forças Armadas. Mas “não é pessimista” - diz Marcelo - “é realista” porque “tem a noção exata das dificuldades que enfrentou e das dificuldades que se enfrenta ainda hoje”. Com a tónica nas Forças Armadas que Eanes diz que estão “perto da irrelevância”, o atual Comandante Supremo faria questão de contrapor como os militares “de forma excecional, mesmo com parcimónia de meios, mesmo com incompreensão de facetas do seu papel, conseguem ser notáveis”.
Jantar em casa de Marcelo
Os caminhos divergentes e as grandes discordâncias entre Marcelo e Eanes têm antecedentes. Em 1978, o jornalista do Expresso chegou a viajar com o então Presidente da República durante dez dias, quando este realizou uma visita oficial ao Brasil, Venezuela e aos Estados Unidos, onde se realizava uma cimeira da NATO. Em plena ditadura militar no Brasil, “não há telejornal de hora a hora, nem comentário da imprensa que não disserte acerca da ‘sisudez’ do chefe de Estado", havia de escrever Marcelo nas páginas deste jornal, com a sua dose habitual de maldade.
É exatamente quando Marcelo está em périplo com Eanes que se desenrola em Lisboa o psicodrama das “Opções Inadiáveis”, que resultam numa cisão no PSD, com acusações a Sá Carneiro de “ódio e confrontação” contra Ramalho Eanes e Mário Soares. Os Inadiáveis tencionam manter o apoio a Ramalho Eanes. Desta vez, Marcelo até poderia estar daquele lado, mas acaba por não embarcar na cisão. Em todo o caso, não concordava com Sá Carneiro na estratégia de confronto com Belém.
Tanto assim é que antes de a crise interna rebentar no partido, Marcelo tinha dado sinais de aproximação a Eanes, divergindo do líder do PSD. Nessa fase, raramente ataca Ramalho Eanes e por vezes até o elogia. Mantém encontros com Eanes em Belém, mais como político do que como jornalista (naquela época estava tudo muito misturado), e chega a jantar no Palácio de Belém com o casal presidencial (esta sexta-feira até foi Marcelo quem conduziu Manuela Eanes pelo braço até ao seu lugar no auditório da Culturgest). E retribui: um dia antes da apresentação da moção de confiança que havia de fazer cair o I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares no Parlamento, Marcelo convida o próprio presidente da República Ramalho Eanes para jantar em sua casa, em Cascais, com Francisco Pinto Balsemão e António Sousa Franco (que então liderava o PSD).
No fundo, o passado comum do primeiro e do último Presidente da República em democracia foi sendo aplainado pela inexorável passagem dos anos, e suavizado por essa magnanimidade dos vencedores. Resta saber do futuro: 100 anos depois de se iniciar o ciclo de Presidentes militares com a ditadura e 40 depois do último militar (Eanes) sair da Presidência, Marcelo não vê com bons olhos o regresso de uma farda a Belém. E Ramalho Eanes?