João Sousa, fotojornalista português, chegou ao Líbano pela primeira vez em 2016, numa viagem sem grandes planos. Anos depois, entre revoluções, pandemia e momentos de silêncio, o seu trabalho ganhou um novo significado no país que descreve como "absolutamente fascinante".
“É um país do tamanho do Alentejo, mas com uma densidade demográfica incrível e uma diversidade enorme, tanto de pessoas como de religiões e até divisões políticas. É também rico em história – antiga, moderna e conturbada. Muitas guerras, muitos conflitos.” Estas características tornaram o Líbano o lugar perfeito para João explorar a sua paixão por narrativas de viagem, combinando fotografia e escrita.
"No Líbano, todos são contadores de histórias"
João encontrou, no povo libanês, um espírito resiliente e uma habilidade quase natural para narrar vivências.
“Todos os libaneses são contadores de história, atravessando todas as faixas etárias, porque basicamente todas as pessoas no Líbano já passaram por experiências extraordinárias, extremas e traumatizantes. Ter um contacto direto com essa realidade foi algo inédito para mim.”
Foi neste cenário que testemunhou de perto a revolução de 2019, um movimento que começou com danças e celebrações nas ruas, mas que rapidamente evoluiu para confrontos violentos.
“Quando comecei a fotografar, os protestos já eram extremamente violentos. Havia troca de pedras, gás lacrimogéneo, bastonadas das autoridades. Ali, no meio de tudo, achei que era importante registar aquilo.”
Pandemia em Beirute: o silêncio de uma cidade frenética
Com o início da pandemia, João ainda ponderou regressar a Portugal, mas o fecho do aeroporto mudou os seus planos.
“O governo anunciou que o aeroporto fecharia por 15 dias por causa da COVID. Pensei: ‘Aguento mais 15 dias’, mas esses 15 dias tornaram-se meses.”
Foi nesse período que João documentou momentos únicos na história de Beirute.
“Beirute é uma cidade frenética, cheia de buzinas e multidões. É raro encontrar um espaço tranquilo. Durante a pandemia, vi uma cidade fantasma, onde finalmente se podia respirar ar puro e ouvir os pássaros. O contraste entre estas duas realidades era absolutamente descomunal.”
Explosão no porto de Beirute: a ironia que salvou a minha vida
João Sousa sobreviveu a alguns dos momentos mais traumáticos da história recente do Líbano. Da revolução de 2019 à pandemia, passando pela explosão no porto de Beirute, João capturou com a sua câmara histórias de resiliência, dor e sobrevivência.
“Eu sobrevivi à explosão. Sou um sobrevivente, não só de guerra, mas também da maior explosão não nuclear da história da humanidade.”
A 4 de agosto de 2020, às 18h07, João ouviu um estrondo como nunca tinha ouvido.
"Estava a cobrir uma manifestação perto do edifício da Eletricidade do Líbano, que fica muito perto do porto. Era uma semana calma, sem grandes acontecimentos além dos protestos, mas o governo tinha anunciado um novo confinamento. De repente, ouvimos um som inédito. Não era fogo de artifício, nem tiros celebratórios. Perguntámo-nos: ‘Será que a guerra chegou?’”
O que João descreve como “uma onda sónica invisível” atravessou a cidade e chegou ao seu apartamento, a cerca de 800 metros do porto.
“Estava na terceira linha de impacto. Felizmente, devido à falta de eletricidade, as janelas estavam abertas para ventilar, e isso salvou-me a vida. Não houve estilhaços. Ironia do destino: a crise elétrica no Líbano salvou-me naquele dia.”
Apesar do choque, João agarrou na câmara e foi para as ruas documentar a devastação. "Falei com a minha editora e disse: ‘Estou vivo, vou enviar as fotografias.’ Já não era só um viajante interessado em comunicar histórias pessoais; estava a registar a realidade à minha volta, mesmo quando me afetava diretamente.”
As semanas e meses que se seguiram foram um turbilhão emocional. João confessa que mal dormiu, atormentado pela adrenalina e pelo trauma.
“Vi pessoas mortas, esventradas pelos vidros. A realidade à minha volta, aqueles edifícios que eram familiares, tudo destruído ”.
A explosão deixou pelo menos 220 mortos, milhares de feridos e cerca de 300 mil pessoas desalojadas. João destaca a ausência do governo no rescaldo da tragédia. “O Estado libanês é praticamente inexistente. A ajuda veio das próprias pessoas e da comunidade internacional. Foi uma crise humanitária de enorme dimensão e as pessoas ficaram entregues a si mesmas.”
Um país marcado pela resiliência
João também testemunhou outros momentos críticos, como a crise de combustível em 2021 e os tiroteios na rotunda de Tayouneh, local simbólico do início da guerra civil de 1975. “Estive lá quando tiroteios entre grupos rivais quase desencadearam uma nova guerra civil. Houve mortos, feridos e destruição numa zona residencial extremamente movimentada".
No auge da crise de energia, João lembra-se de noites sufocantes sem eletricidade, dormindo no chão para escapar ao calor. “A eletricidade era limitada a 2 ou 3 horas por dia. Não havia como escapar à humidade e ao calor insuportável do verão libanês.”
“Penso que vivi tudo o que era possível viver em termos de acontecimentos extremos no Líbano. Sobrevivi à revolução, à pandemia, à explosão e aos conflitos armados. Tudo isso deu-me uma visão muito específica do espírito libanês: é um povo que se desenrasca sem contar com o Estado, porque sabe que não pode contar com ele.”
João Sousa recorda que, apesar de tudo, grande parte do tempo vivido em Beirute foi preenchido por dias normais, embora frequentemente marcados por eventos que necessitavam de cobertura noticiosa.
A vida em Beirute
"Beirute é uma cidade vibrante, com uma diversidade enorme de pessoas e acontecimentos. Há também muita tensão política, partidária e sectária. Grande parte da população é contra a presença do Hezbollah, enquanto outros defendem a sua atuação por considerarem que evita a entrada de Israel no país. Basta uma faísca para tudo rebentar. As dimensões tão pequenas do Líbano tornam tudo mais denso: viras uma esquina e já estás num bairro completamente diferente."
Mas o Líbano não se resume à violência. "Há um lado fascinante, com histórias e vivências que nada têm a ver com guerra. Foi esse lado que quis explorar."
A decisão de ficar no Líbano como casal foi reforçada mesmo após a crise económica, a pandemia e a explosão de 2020. "Pensámos que talvez fosse possível construir uma vida no Líbano, e conseguimos, até ao nascimento da nossa filha, no final de 2022."
O início do fim
A 7 de outubro de 2023, João regressava a Beirute vindo do norte quando se cruzaram com tanques militares na estrada. "Fui logo ver as notícias, o que é que tinha acontecido e o 7 de outubro tinha acontecido em Israel".
No dia seguinte, o Hezbollah anunciou oficialmente a sua entrada na guerra em solidariedade com o Hamas, marcando o início de uma escalada de violência.
"Os primeiros ataques concentraram-se na fronteira sul do Líbano, mas rapidamente atingiram outras zonas. Beirute tornou-se um alvo, com assassinatos seletivos, incluindo de altos comandantes do Hezbollah. A situação foi piorando de forma lenta, mas constante."
"Acho que está na altura de irmos embora"
Foi um bombardeamento muito próximo que acabou por decidir a partida do Líbano.
"Estávamos em casa, e de repente a casa estremeceu com a força da explosão. Tinham bombardeado um bairro ali perto, onde ficava um edifício onde estavam reunidos altos comandantes da Brigada Radwan, uma das mais importantes do Hezbollah. Foi nesse momento que disse: 'Acho que está na altura de irmos embora. Não podemos garantir a nossa segurança aqui. Está tudo a rebentar à nossa volta.'"
Naquela altura, os atentados e bombardeamentos estavam a aumentar em intensidade e frequência. A Operação Flechas do Norte, lançada por Israel, tinha causado centenas de mortos e deslocado mais de 110 mil pessoas, muitas delas do sul do Líbano e da zona do Vale do Beqaa, a leste. A maior parte dos deslocados internos eram pessoas sem meios financeiros para abandonar o país, enquanto voos comerciais se tornavam cada vez mais escassos e extremamente caros.
"Nós já estávamos em contacto com a Embaixada portuguesa no Chipre, que é a representação diplomática para o Líbano. Mantivemos uma linha aberta com eles para o caso de ser necessário sair de urgência."
O momento decisivo chegou numa quinta-feira à noite. "Recebi um telefonema perto da meia-noite, dizendo que era possível sair do Líbano. Às 8 da manhã de sexta-feira já estávamos no aeroporto de Beirute, eu, a minha esposa e a nossa filha, prontos para fugir. Fizemos uma escala no Chipre e ficámos lá até sábado, quando finalmente conseguimos viajar para Portugal."
Quando chegaram ao Chipre e ligaram à internet, as imagens que viram confirmaram a gravidade da situação. "Eram cenas apocalípticas. Foi uma questão de sorte termos escapado a este cenário. Literalmente por um triz."
"Estou muito cético em relação ao cessar-fogo
João Sousa não tem dúvidas sobre a fragilidade do atual cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah. Para ele, a paz duradoura ainda parece uma miragem e as tentativas de cessação das hostilidades não são mais do que uma pausa temporária num conflito que já dura décadas.
"Eu estou muito cético em relação ao cessar-fogo, honestamente. Não é por ser cínico em relação às coisas boas que acontecem, mas este cessar-fogo surge após uma série de eventos, como as eleições norte-americanas e o resultado dessas eleições", diz João, refletindo sobre o impacto da política internacional na dinâmica do Oriente Médio. Para ele, a posição de Donald Trump, que se opõe à continuidade da guerra, contrastando com a de Joe Biden, é um fator crucial. "Trump é um homem de negócios, não um político. Não se pode fazer muito negócio para além do negócio das armas",
O Líbano continua a ser um país devastado por séculos de influências externas, corrupção e divisões sectárias, religiosas e políticas.
"Eu espero que isto seja um cessar-fogo permanente. Mas não há permanência, nenhuma numa terra daquelas, numa terra que continua a ser bastante castiga da por influências internas e externas, de extrema corrupção, divisões sectárias, religiosas, políticas. Estados Unidos Irão Arábia Saudita, França, Israel. A Síria também todos estes países têm tido uma influência direta e bastante nefasta, d e uma maneira ou de outra, no Líbano"