Exonerada na véspera de cumprir um ano à frente da Fundação CCB, a gestão de Francisca Carneiro Fernandes foi curta, mas pode ter causado danos às finanças do Centro Cultural de Belém, após sete anos de contas certas e resultados positivos garantidos pelo antecessor, Elísio Summavielle, até em tempos de pandemia.
Na sua saída, a meio do terceiro mandato, o então gestor do equipamento cultural deixou as contas positivas em 1,2 milhões de euros. Mas mesmo entrando com as atividades para 2024 totalmente planeadas e programadas, a sucessora tomou, durante este ano, decisões cujo impacto está ainda por conhecer. Por um lado, emagreceu os orçamentos de quase todos os responsáveis de áreas de programação, por outro, entregou essa fatia de leão a Aida Tavares, empossada num cargo criado por Francisca Carneiro Fernandes e remunerado quase ao mesmo nível da presidente (perto de 5,5 mil euros/mês, contra 6,6 mil). Além disso, onerou os custos salariais da estrutura em quase mais de 1 milhão de euros e cortou nas produções externas e nos alugueres de salas para eventos, que representam o maior bolo de rendimento próprio do CCB.
A preocupação foi partilhada com o SAPO por fontes conhecedoras do processo, que apontam um "perfil centralizador" na gestão de Francisca Carneiro Fernandes, que inclusivamente foi "pondo em causa a autonomia técnica de todos os colaboradores", levando a "aumentos de encargos" desnecessários e injustificados.
"Quase todos os responsáveis pelas áreas de programação viram o respetivo orçamento reduzido para 2024", relatam as mesmas fontes ao SAPO, indicando que as áreas de teatro, dança e outras músicas foram as mais afetadas. Um exemplo: "Um programador que em 2023 dispunha de cerca de 600 mil euros para programar passou a ter 80 mil euros para jazz, hip-hop e outros géneros, deixando mesmo de ter intervenção no teatro e na música, já que essas áreas passaram diretamente e sem qualquer explicação" para a recém-nomeada diretora de Artes Performativas e do Pensamento, Aida Tavares.
O afastamento e retirada de autonomia aos trabalhadores do CCB caiu mal não apenas porque "a sua intervenção era considerada de valor", mas porque o desempenho tinha provas dadas. "Em 2023, foram apresentados resultados relevantes, nomeadamente, neste caso, quase 50% das receitas de bilheteira advieram do trabalho do programador que viu o seu orçamento reduzido em mais de 90%."
A diretora que Costa colocou
Recorde-se que a decisão de levar Aida Tavares para o CCB, para um cargo criado especificamente para a acomodar, foi uma "sugestão" do governo socialista — uma cunha do próprio então primeiro-ministro, António Costa, concretizada pelo ex-ministro da Cultura, Adão e Silva, após a substituição de Elísio Summavielle, que largou o lugar de presidente depois de recusar a ingerência do governo.
Mas a contratação da nova diretora artística, levada à primeira reunião do Conselho de Administração de Francisca Carneiro Fernandes e sem concurso ou equivalente processo de seleção, não foi de todo unânime, acabando por ser aprovada apenas com o voto de qualidade da nova presidente do CCB, com um dos vogais a abster-se e outro a votar contra. A discórdia, contam ao SAPO as mesmas fontes conhecedoras, deveu-se ao facto de "a presidente pretender contratar uma determinada pessoa (Aida Tavares), sem abrir um processo de recrutamento externo, como sempre se tinha feito para o MAC/CCB".
A razão alegada para dispensar o concurso foi a urgência de uma nomeação que já havia sido "abordada entre o anterior ministro e o anterior presidente do CCB", Summavielle, que sempre negou essa necessidade e nem sequer comunicou a hipótese aos seus vogais. A pressa de se concretizar logo após a entrada da nova presidente, em dezembro de 2023, é ainda questionada dado que a programação para 2024 já se encontrava "concluída e aprovada pelo respetivo conselho diretivo, em sede de Plano de Atividade e Orçamento para 2024".
"Nesta decisão de contratação direta, com uma abstenção, um voto contra e um voto a favor, foi definido um vencimento mensal correspondente ao nível 18, escalão 1, que já não se encontrava em aplicação e que se destinava à função de diretor-coordenador", contam ainda ao SAPO as mesmas fontes, explicando que o vencimento de 5,4 mil euros brutos definido não correspondia ao valor fixado para o cargo. O vencimento para o presidente, que se mantém há vários anos, é de 6.632,00 euros brutos.
Aumentos de Natal não espelham mais receita
As implicações financeiras das decisões tomadas por Francisca Carneiro Fernandes são vistas com preocupação e não se limitam àquela contratação. A agora exonerada presidente do CCB, contra a recomendação da sua própria administração, que aconselhava "ponderação", comunicou ainda aumentos salariais generalizados no jantar de Natal da equipa CCB do ano passado. Uma medida que leva a uma subida dos custos com salários superior a 1 milhão, incluindo 232 mil euros em valorização das equipas e outros 244 mil euros para "novas contratações".
Os custos totais de pessoal, que em 2024 já foram de 6,8 milhões, chegarão no próximo ano aos 8 milhões de euros.
De acordo com o relatório de atividades publicado na página do CCB, os gastos com pessoal mantiveram-se pouco acima dos 5 milhões pelo menos desde 2019, tendo aumentado apenas no ano passado, em cerca de 1,3 milhões, por efeito da integração dos 66 funcionários da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo na estrutura do CCB, colocando o total de colaboradores em 221 pessoas.
"A valorização salarial das equipas é fundamental e compreensível, mas é preocupante um novo aumento de meio milhão de euros em custos de pessoal, sobretudo quando a receita só aumenta 2%", realçam as fontes contactadas pelo SAPO. A percentagem de subida nas receitas corresponde a cerca de 140 mil euros, longe dos 500 mil de gastos adicionais com remunerações.
Mesmo num momento em que os novos edifícios planeados na expansão do CCB — o centro de congressos e o projeto para o hotel, previstos desde o projeto inicial e agora perspetivando-se que estejam prontos em 2027 — comecem a ter retorno, o rendimento extra não excederia os 350 mil euros, apontam as mesmas fontes.
Pior, a despesa com que Francisca Carneiro Fernandes se comprometeu vem acompanhada de decisões que se traduzem numa expectável queda de receitas. "O CCB sempre garantiu uma disponibilidade de salas de espetáculo, em particular do Grande Auditório, para as produções externas, os 'alugueres de sala'. Mas em finais de 2023, a nova orientação impôs uma redução desta disponibilidade, limitando uma oferta cultural privada que levava outros públicos ao CCB, com taxas de ocupação por espetáculo na ordem dos 90%", vincam as mesmas fontes.
Voltando ao relatório de atividades, em 2023, o resultado líquido do CCB foi positivo em 1,2 milhões de euros. É do subsídio garantido pelo orçamento do Ministério da Cultura que vem a maior fatia de financiamento, uma transferência de 10,6 milhões de euros (66% do total), a que Adão e Silva somou mais 1 milhão para o atual exercício. Entre os rendimentos próprios que compõem os restantes cerca de 6 milhões de orçamento, é nos eventos ali realizados para entidades externas, aluguer de espaços e rendas comerciais que se consegue arrecadar mais. São 3,5 milhões de euros, três vezes mais do que a receita de bilheteira anual.
Ora, se na temporada do ano passado se realizaram naquele equipamento cultural 34 produções externas, para a de 2024/2025 foram agendadas apenas 19, prevendo-se uma quebra significativa na entrada de capital no CCB por essa via.
Despesas "sem sentido"
À gestão da presidente exonerada, as mesmas fontes contactadas pelo SAPO apontam ainda outros problemas. A começar por um "perfil centralizador, seja no decurso de concursos públicos seja na formação do preço base dos procedimentos a lançar". Referem-se as queixas à ordem dada por Francisca Carneiro Fernandes para nada acontecer sem a sua validação prévia, "pondo em causa a autonomia técnica de todos os colaboradores e de quem tinha competência para propor ao Conselho de Administração as aquisições, nomeadamente impondo alterações às deliberações de júri".
Por outro lado, garantem, a metodologia definida levou a aumentos de encargos com prestações de serviço. "Por exemplo, quando se contratava serviços de viagens, alojamentos e transferes de forma separada, argumentando com um fracionamento de despesa, encarecia exponencialmente os respetivos custos e a seleção de hotéis fora dos protocolos chegava a duplicar o preço do quarto. Isto chegou a motivar queixas escritas de gestores de contrato que, por via de aquisições a uma agência de viagens, rebentaram o seu orçamento."
Situações que igualmente fizeram disparar as despesas, de acordo com as mesmas fontes, prendiam-se com decisões de pouco sentido. "Foi criada uma direção jurídica, mas as matérias que deveria tratar eram puxadas à análise da presidente, da sua assessora (que entretanto apresentou a sua demissão) e de um consultor jurídico externo (cujo contrato de prestação de serviços termina no fim do ano)", exemplificam.
Outro caso relatado foi a "indicação expressa" de que determinado serviço deveria ser contratado mais caro do que era então conseguido, porque isso se traduziria em mais qualidade. "Não só isso não se verificou como a adjudicatária que venceu o concurso público foi a mesma, mas passou-se a pagar um preço bastante superior", contam.