
Os casos de corrupção, semicorrupção, crimes gravosos ou mesmo crimes caricatos têm se multiplicado nos últimos anos. Há para todos os gostos, desde as malas de Miguel Arruda, aos despedimentos ilegais no Bloco de Esquerda, à empresa familiar do primeiro-ministro. A normalização da falência moral e ética de alguns políticos e forças partidárias conduz a um descrédito do debate e serviço público.
Descrédito que se acentua quando nos sentamos confortavelmente no sofá a assistir ao circo de injúrias, falácias e labreguice que se tornou a Assembleia da República. Muitos deputados deixaram de se sentir convidados para a casa da democracia: creem ser eles os anfitriões. Escusado será dizer que o comportamento na casa dos outros é sempre mais cuidado do que na nossa. Dado isto, os deputados do Chega sentem-se no direito de expressar impropérios boçais contra os seus colegas de profissão e tornar a dialética fundadora da democracia num chiqueiro que não edifica, mas destrói.
Se faz todo o sentido ter um código de ética e bons costumes no Parlamento? – faz! Aliás já tinha advogado aqui por um mecanismo semelhante aquando da votação para presidente da Assembleia da República. No entanto, creio que estamos a atuar a jusante – no Parlamento; quando esse código de ética e conduta deveria ser aplicado a montante, nos próprios partidos políticos.
Apesar de reprovável, compreende-se que um partido como o Chega tenha atamancado candidatos à pressa para encher as listas. Se já surgiram casos obscenos de alegada criminalidade, e muitos estarão por descobrir, quando se começar a “escavar” as comissões políticas locais na antecâmara das eleições autárquicas, certamente será uma época fértil para novos casos verem a luz do dia e resultarem em novas expulsões do partido, como advoga o seu líder.
Se, pela própria natureza ideológica do Chega, é com alguma naturalidade que surgem casos e casinhos no meio do partido, o mesmo não se pode dizer de partidos que estão cristalizados na geometria parlamentar portuguesa há décadas. O caso dos despedimentos no Bloco de Esquerda, conhecido pela sua defesa trotskista dos trabalhadores, mas que afinal tem um amor à produtividade e às horas extra dos seus colaboradores, é, por outro lado, nada condigno com o que apregoa.
O mesmo se pode dizer de PS e PSD, que ao longo dos anos foram acumulando casos e casinhos, que minaram a confiança nos partidos do centro e foram, em parte, responsáveis pelo crescimento dos extremos do espectro político. Aliás, são demasiados para enumerar, sendo o mais recente do primeiro-ministro e da sua empresa com sede no próprio domicílio da família Montenegro. Se constitui um conflito de interesses, parece-me claro que sim; se isso é suficiente para uma moção de censura ou a queda de um governo, parece-me manifestamente exagerado.
É motivo, sim, para uma discussão aprofundada sobre a possibilidade de criar mecanismos de auditoria e “controlo de qualidade” dos partidos. Esse controlo pode ser feito de dentro para fora ou de fora para dentro. As democracias nórdicas fazem-no! Não quer dizer que o modelo não seja falível, mas o carater preventivo desses mecanismos evita situações ridículas a que temos vindo a assistir nos últimos anos.
De dentro para fora, os partidos podem e devem estabelecer um código ético interno. Isto não é o mesmo que os estatutos do partido, nem deve ser um documento que reprima vozes dissonantes dentro dos partidos. Aliás, essa pluralidade de opiniões e pontos de vista intrapartidários é saudável, os partidos portugueses é que vivem na ilusão que um corpo coletivo com milhares de militantes se deve manter uno e indivisível. Pelo contrário, o código de ética deve estabelecer-se através da participação colaborativa e pautar o comportamento do partido perante os seus funcionários e militantes. Previnem-se os abusos de poder e determinam-se as linhas fundamentais de atuação e comportamento, principalmente para os militantes e colaboradores que têm papéis de representação ativa e constante comunicação com a sociedade civil.
De fora para dentro, a criação de entidades autónomas e imparciais que garantissem a regularidade dos partidos e das suas ações seria um incremento notável para a qualidade da nossa democracia. Como exemplo, particularmente relevante nas democracias nórdicas, a presença de um Ombudsman da democracia, com poderes reforçados para escrutínio do funcionamento do parlamento e dos partidos. Esta alteração obrigaria os partidos a demonstrarem o que se denomina por “accountability”, ou seja, a prestação de contas à sociedade civil. Estes organismos devem ter acesso às fontes de financiamento dos partidos, às suas atividades económicas e folha salarial.
Para além disso, seriam um instrumento fundamental para garantir que os membros dos partidos com representação ativa são impolutos a nível judicial e não possuem qualquer atividade passível de conflito de interesses com a sua atividade política. Em última instância, correndo o risco de excessiva ingerência nos assuntos internos do partido, a meritocracia intrapartidária deveria ser supervisionada para prevenir situações de clientelismo e troca de favores entre militantes. Esta linha de atuação diminuiria o número de políticos de carreira e reduziria a frequência de fenómenos de indivíduos que se perpetuam desde a juventude nos quadros partidários, atingindo posições de relevo mais por senioridade do que por mérito e obra feita.
Mecanismos de auditoria são prática comum em empresas, ministérios, universidades, sistemas políticos e partidos políticos nas democracias mais robustas da Europa. O principal objetivo é garantir o saudável desenvolvimento das atividades da respetiva entidade. Respira-se melhor quando se está de consciência tranquila quanto ao trabalho desenvolvido. Previne escândalos e devolve confiança e legitimidade aos olhos da população.
Os partidos portugueses são os nossos principais representantes, mas vivem numa ilha estatutária, que lhes permite ocultar ou utilizar zonas cinzentas da lei para práticas no limbo da legalidade, isto enquanto carecem de um escrutínio efetivo e sistemático. Se queremos ser representados pelos melhores e devolver a credibilidade ao sistema político, a mudança começa na transparência da atividade partidária.